domingo, fevereiro 19, 2006
Literatura a jato
Paulo Roberto Pires
"Literatura a jato", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 26/06/03
"‘Das coisas esquecidas atrás da estante’ (7 Letras) é o segundo livro de Clarah Averbuck em menos de dois anos. O primeiro, ‘Máquina de pinball’ (Conrad), virou peça de teatro e está sendo roteirizado para o cinema. Números, como se sabe, dizem pouco ou quase nada sobre ficção e sua qualidade, mas aqui são eloqüentes e inequívocos de um fenômeno que nada tem a ver com crítica. Eles testemunham a impressionante aceleração com que circula hoje a literatura, saída de um blog - no caso, o Brasileira!Preta - e rapidamente encaminhada para o circuito tradicional do livro. Se restam poucas dúvidas de que a internet tem papel fundamental na nova paisagem , há enormes interrogações sobre o quanto é determinante para jovens autores que se fizeram conhecer justamente através da web.
Nestas horas é bom ouvir os principais interessados. Diz Clara num comentário postado em seu blog, semana passada: ‘Eu simplesmente não agüento mais essa baboseira de blogs. Chega. Blog não passa de um meio de publicação. O autor do blog, dono e soberano do blog, faz o que bem entender com seu blog. Não existe literatura de blog. Não existe escritor de blog. Blogueiro não é escritor. Escritor não é blogueiro. Não existe escritor de blog. Existe blog enquanto meio de publicação para um escritor. Escritor é escritor. Escritor não é blogueiro. Não sei nada sobre o fenômeno blog. Sequer acho que seja um fenômeno. Nunca mais respondo nenhuma pergunta sobre blog. Por favor, não me incomodem com essas coisas.’
Dentre tantas negativas, algumas exageradas, outras certeiras, uma frase chama a atenção: ‘Blog não passa de um meio de publicação’. Ou seja, a página pessoal, facílima de montar e manter, seria nessa lógica pouco mais do que um canal no qual seu proprietário, ‘dono e soberano’, faz o que bem entender. Esta antidefinição demarca bem, ainda, outra posição: escritor não é blogueiro, blogueiro não é escritor - pelo menos teoricamente, um administra o meio, outro produz a mensagem. O único problema é que, pela primeira vez na História, estes papéis não são tão nítidos: em geral, quem escreve publica, muitas vezes imediatamente, queimando assim várias etapas de produção e distribuição de textos. E, ainda, o que muito justamente se dá por rotineiro tem, historicamente, um peso pouco desprezível: trata-se, na prática, da total liberdade de expressão e difusão. Caiu na rede, já é público.
Há quase 70 anos, em 1934, Walter Benjamin preocupava-se com o mesmíssimo tema, obviamente em outros termos. ‘O autor como produtor’ foi o título que deu a uma conferência, hoje em suas obras completas, proferida naquele ano no Instituto para o Estudo do Fascismo, antes portanto de o nazismo o trancafiar num campo de prisioneiros e o empurrar para o suicídio na fronteira da França com a Espanha. Exatamente como nos indagamos hoje sobre a web ou realidade virtual, discutia-se na época as transformações do universo técnico, o cinema impondo a cultua das imagens e, assim, modificando, o alcance e as possibilidades da escrita. Seu ponto de partida, o ‘problema da autonomia do autor: sua liberdade de escrever o que quiser’.
Inspirado no amigo Bertolt Brecht, impregnado por um marxismo pouco ortodoxo, Benjamin dividia o problema entre escritores ‘rotineiros’ e ‘engajados’, os primeiros alimentando irracionalmente imprensa, falatórios de partido ou bibliotecas, os últimos procurando ‘não abastecer o parelho de produção, sem o modificar, na medida do possível’. Antes que se jogue fora os termos, postos em desuso no mundo globalizado, vale a pena prestar atenção no que ele define como escritor engajado: ‘a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor’. Em poucas palavras, morre o esquerdista de carteirinha, previsível como ele só, para dar lugar ao escritor/intelectual/artista que precisa entender as novas exigências de expressão.
O autor que é produtor é o que conhece a técnica e a domina, recusando assim as divisões tradicionais. Ele exemplifica: se o jornalista aprende a fotografar, texto e imagem deixam de ter uma relação de subordinação e criam uma nova forma de expressão. De novo, Benjamin: ‘Somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo de produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo de politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas, - a matéria e a intelectual - , erigidas para separá-las, precisam ser derrubadas conjuntamente.’
Na década de 30, Benjamin via adiante o que chamava de ‘fusão das formas literárias’, mistura de sons, imagens e palavras de onde, segundo ele, poderia surgir algo de novo, singular, em suma, revolucionário. Quanto mais o capitalismo avança e desenvolve industrialmente formas de expressão variadas, vai lançando tudo numa ‘massa líquida incandescente’ de onde podem sair formas eficazes de contestação e transformação. O filósofo não tinha nada de profeta mas com sua acuidade certamente anteviu uma situação em que a saturação de escrita, som e imagens em movimento convergiu para uma ‘massa’ virtual de onde pode sair tudo, da reprodução de valores tradicionais à difusão de novidade, no sentido amplo.
Quando, em pouco cliques e com uma linha telefônica, é possível criar um canal de informações próprio - para divulgar pornografia, diários íntimos, política ou literatura - o autor vai se tornar produtor e verá, mais uma vez, lançado ao dilema de ser ‘rotineiro’ ou ‘engajado’. Se este último não se define mais pela vontade de construir o socialismo, certamente norteia-se pela vontade de divergir, de criar dissonância - afinal ninguém põe no ar um blog para repetir o noticiário em sua forma corrente ou brincar de CNN. E, no caso da tentativa literária, quer difundir, para sabe-se lá quem, sua voz própria, sua irredutível individualidade e originalidade. Daí, talvez, a recusa de filiar-se a um suposto movimento ‘blogueiro’ ou a qualquer tipo de tribo.
O que se tem como concreto disso tudo é a liberdade do autor que domina a produção, do escritor que publica sem editor. Nos anos 70, as tentativas de se tornar autor-produtor vinham carimbadas como marginais - que desafiavam a prensa com o mimeógrafo. Mas isso é assunto para outro dia.
P.S. necessário e FUNDAMENTAL - A gentileza de Roberto Quartin, produtor fundamental para a música brasileira, faz uma correção fundamental à coluna anterior, ‘Shirley Horn essencial’. No texto, reclamei inadvertidamente a ausência do piano de Shirley Horn em seu excelente novo disco. Os motivos de a cantora ser substituída por um pianista, me informa Quartin, são cruéis: ano passado Mrs. Horn teve um pé amputado devido a complicações de diabetes e desde então apresenta-se em cadeira de rodas, ainda que cantando como nunca. E, ainda segundo ele, a tragédia continua por outros meios, pois a Verve não renovou seu contrato. Já que, como dizia Ataulfo Alves, perdão foi feito pra gente pedir, aqui vão as desculpas do colunista."
"Literatura a jato", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 26/06/03
"‘Das coisas esquecidas atrás da estante’ (7 Letras) é o segundo livro de Clarah Averbuck em menos de dois anos. O primeiro, ‘Máquina de pinball’ (Conrad), virou peça de teatro e está sendo roteirizado para o cinema. Números, como se sabe, dizem pouco ou quase nada sobre ficção e sua qualidade, mas aqui são eloqüentes e inequívocos de um fenômeno que nada tem a ver com crítica. Eles testemunham a impressionante aceleração com que circula hoje a literatura, saída de um blog - no caso, o Brasileira!Preta - e rapidamente encaminhada para o circuito tradicional do livro. Se restam poucas dúvidas de que a internet tem papel fundamental na nova paisagem , há enormes interrogações sobre o quanto é determinante para jovens autores que se fizeram conhecer justamente através da web.
Nestas horas é bom ouvir os principais interessados. Diz Clara num comentário postado em seu blog, semana passada: ‘Eu simplesmente não agüento mais essa baboseira de blogs. Chega. Blog não passa de um meio de publicação. O autor do blog, dono e soberano do blog, faz o que bem entender com seu blog. Não existe literatura de blog. Não existe escritor de blog. Blogueiro não é escritor. Escritor não é blogueiro. Não existe escritor de blog. Existe blog enquanto meio de publicação para um escritor. Escritor é escritor. Escritor não é blogueiro. Não sei nada sobre o fenômeno blog. Sequer acho que seja um fenômeno. Nunca mais respondo nenhuma pergunta sobre blog. Por favor, não me incomodem com essas coisas.’
Dentre tantas negativas, algumas exageradas, outras certeiras, uma frase chama a atenção: ‘Blog não passa de um meio de publicação’. Ou seja, a página pessoal, facílima de montar e manter, seria nessa lógica pouco mais do que um canal no qual seu proprietário, ‘dono e soberano’, faz o que bem entender. Esta antidefinição demarca bem, ainda, outra posição: escritor não é blogueiro, blogueiro não é escritor - pelo menos teoricamente, um administra o meio, outro produz a mensagem. O único problema é que, pela primeira vez na História, estes papéis não são tão nítidos: em geral, quem escreve publica, muitas vezes imediatamente, queimando assim várias etapas de produção e distribuição de textos. E, ainda, o que muito justamente se dá por rotineiro tem, historicamente, um peso pouco desprezível: trata-se, na prática, da total liberdade de expressão e difusão. Caiu na rede, já é público.
Há quase 70 anos, em 1934, Walter Benjamin preocupava-se com o mesmíssimo tema, obviamente em outros termos. ‘O autor como produtor’ foi o título que deu a uma conferência, hoje em suas obras completas, proferida naquele ano no Instituto para o Estudo do Fascismo, antes portanto de o nazismo o trancafiar num campo de prisioneiros e o empurrar para o suicídio na fronteira da França com a Espanha. Exatamente como nos indagamos hoje sobre a web ou realidade virtual, discutia-se na época as transformações do universo técnico, o cinema impondo a cultua das imagens e, assim, modificando, o alcance e as possibilidades da escrita. Seu ponto de partida, o ‘problema da autonomia do autor: sua liberdade de escrever o que quiser’.
Inspirado no amigo Bertolt Brecht, impregnado por um marxismo pouco ortodoxo, Benjamin dividia o problema entre escritores ‘rotineiros’ e ‘engajados’, os primeiros alimentando irracionalmente imprensa, falatórios de partido ou bibliotecas, os últimos procurando ‘não abastecer o parelho de produção, sem o modificar, na medida do possível’. Antes que se jogue fora os termos, postos em desuso no mundo globalizado, vale a pena prestar atenção no que ele define como escritor engajado: ‘a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor’. Em poucas palavras, morre o esquerdista de carteirinha, previsível como ele só, para dar lugar ao escritor/intelectual/artista que precisa entender as novas exigências de expressão.
O autor que é produtor é o que conhece a técnica e a domina, recusando assim as divisões tradicionais. Ele exemplifica: se o jornalista aprende a fotografar, texto e imagem deixam de ter uma relação de subordinação e criam uma nova forma de expressão. De novo, Benjamin: ‘Somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo de produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo de politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas, - a matéria e a intelectual - , erigidas para separá-las, precisam ser derrubadas conjuntamente.’
Na década de 30, Benjamin via adiante o que chamava de ‘fusão das formas literárias’, mistura de sons, imagens e palavras de onde, segundo ele, poderia surgir algo de novo, singular, em suma, revolucionário. Quanto mais o capitalismo avança e desenvolve industrialmente formas de expressão variadas, vai lançando tudo numa ‘massa líquida incandescente’ de onde podem sair formas eficazes de contestação e transformação. O filósofo não tinha nada de profeta mas com sua acuidade certamente anteviu uma situação em que a saturação de escrita, som e imagens em movimento convergiu para uma ‘massa’ virtual de onde pode sair tudo, da reprodução de valores tradicionais à difusão de novidade, no sentido amplo.
Quando, em pouco cliques e com uma linha telefônica, é possível criar um canal de informações próprio - para divulgar pornografia, diários íntimos, política ou literatura - o autor vai se tornar produtor e verá, mais uma vez, lançado ao dilema de ser ‘rotineiro’ ou ‘engajado’. Se este último não se define mais pela vontade de construir o socialismo, certamente norteia-se pela vontade de divergir, de criar dissonância - afinal ninguém põe no ar um blog para repetir o noticiário em sua forma corrente ou brincar de CNN. E, no caso da tentativa literária, quer difundir, para sabe-se lá quem, sua voz própria, sua irredutível individualidade e originalidade. Daí, talvez, a recusa de filiar-se a um suposto movimento ‘blogueiro’ ou a qualquer tipo de tribo.
O que se tem como concreto disso tudo é a liberdade do autor que domina a produção, do escritor que publica sem editor. Nos anos 70, as tentativas de se tornar autor-produtor vinham carimbadas como marginais - que desafiavam a prensa com o mimeógrafo. Mas isso é assunto para outro dia.
P.S. necessário e FUNDAMENTAL - A gentileza de Roberto Quartin, produtor fundamental para a música brasileira, faz uma correção fundamental à coluna anterior, ‘Shirley Horn essencial’. No texto, reclamei inadvertidamente a ausência do piano de Shirley Horn em seu excelente novo disco. Os motivos de a cantora ser substituída por um pianista, me informa Quartin, são cruéis: ano passado Mrs. Horn teve um pé amputado devido a complicações de diabetes e desde então apresenta-se em cadeira de rodas, ainda que cantando como nunca. E, ainda segundo ele, a tragédia continua por outros meios, pois a Verve não renovou seu contrato. Já que, como dizia Ataulfo Alves, perdão foi feito pra gente pedir, aqui vão as desculpas do colunista."